Gavião – Aliados e Inimigos

Já nas bancas, um dos mais fascinantes heróis da DC Comics: o Gavião. Este volume marca o meu último trabalho nesta colecção que tanto prazer me deu a elaborar e traduzir, em conjunto com um deveras heterogéneo grupo de trabalho ao qual estou muito grato pela oportunidade.

gaviao

Voo de falcão, morte de gavião

Filipe Faria

Quando falamos de personagens com mais de setenta anos de história e que já passaram pelas mãos de dezenas de autores, como é o caso de muitos dos super-heróis clássicos da DC, é inevitável que nos deparemos com mais do que uma versão deles. A ideia principal, a essência da personagem, essa tende a permanecer intacta, mas os anos provaram que as interpretações possíveis são extremamente variegadas, e nenhuma outra figura é maior prova disso do que o Gavião, uma verdadeira placa de Petri dos super-heróis, com uma narrativa expansiva que influenciou de uma forma ou de outra grande parte do Universo DC.

Criado por Gardner Fox e Dennis Neville em 1940 nas páginas de Flash Comics #1, o primeiro Gavião era Carter Hall, cientista rico e coleccionador de armas. Certo dia, ao receber uma adaga pelo correio, Hall é acometido pela recordação de uma passada vida sua, na qual fora o príncipe egípcio Khufu que, juntamente com a sua amada Chay-Ara, fora morto pelo sacerdote Hath-Set com a dita adaga. Por obra do destino, Hall encontra então uma mulher chamada Shiera, reconhecendo-a de pronto como a reencarnação de Chay-Ara, antes de ela ser capturada pela reencarnação de Hath-Set. Hall vê-se assim forçado a agir, munindo-se com armas da sua colecção, equipando um cinto e um par de asas feitos de um tal de «metal enésimo» de sua invenção, que lhe permitia desafiar a gravidade, e indumentando-se como um homem-falcão. Nascia assim o Gavião, o herói vingador que mataria a reencarnação de Hath-Set e retomaria a relação com a sua amada, jurando então lutar contra o crime com a seguinte divisa: «combater o mal do presente com as armas do passado». As suas aventuras tinham uma dinâmica muito peculiar, na medida em que Shiera era um interesse romântico que não só sabia da identidade secreta do herói, como também tinha para com ele uma rivalidade amigável, resultante das suas tentativas de provar ao Gavião que era uma parceira à sua altura. Em 1941, Shiera assumiria a identidade de Moça-Gavião em All-Star Comics #5 (seis meses antes da estreia da Mulher-Maravilha, a primeira-dama das super-heroínas) e passaria combater o crime ao lado do seu amado, excepto quando este era requisitado pela Sociedade da Justiça da América, um grupo no qual o Gavião foi o único membro a estar presente em todas as aventuras. Os Gaviões foram personagens populares durante a Idade do Ouro, mas, tal como a maioria dos seus pares super-heróicos, viriam a desaparecer de circulação na década de 50.

Todavia, e tal como seria de esperar de uma personagem cujo conceito gira em torno da reencarnação, o Gavião não tardaria a regressar. Revivido pelo seu criador Gardner Fox em The Brave and the Bold #34 (1961), o Gavião era agora Katar Hol, um agente da lei do planeta Thanagar, cuja força policial usava fardas inspiradas em falcões e que voavam graças ao tal metal enésimo. Hol veio à Terra com a sua esposa e parceira Shayera em busca de um criminoso foragido, mas finda essa operação o casal decidiu permanecer para aprender mais sobre os métodos policiais terrestres. Para esse efeito, os dois assumiram as identidades secretas de Carter e Shiera Hall, curadores de museu com um fascínio por armas antigas, que complementavam ocasionalmente com a avançadíssima tecnologia thanagariana. Este casal super-heróico foi testado em vários títulos antes de ganhar a sua própria casa em Hawkman #1 (1964) às mãos de Gardner Fox e Murphy Anderson, um dos maiores ilustradores de comics de todos os tempos. Bem entregues a semelhante talento, as aventuras do Gavião tinham um chamativo misto de fantasia, ciência e aventura, com inimigos memoráveis como o Ladrão das Sombras e o Fantasma Fidalgo, além de algozes com um inevitável tema aviário como o Corvo, a Colibri, o Falcão e os Gaviões Assassinos. A série foi contudo cancelada em Hawkman #27 e seguiu-se uma longa travessia pelo deserto para este herói, durante a qual saltou de título em título em histórias complementares, regressando apenas às luzes da ribalta em 1985 na mini-série Shadow War of Hawkman.

Concebida por Tony Isabella, Shadow War of Hawkman serviu sobretudo para desfragmentar a mitologia do Gavião, que Isabella simplificou, livrando-se das engenhocas thanagarianas que se haviam entretanto tornado numa inesgotável fonte de dei ex machina, e fazendo uso de eventos passados para transformar a genérica, superavançada e iluminada Thanagar num planeta totalitário e expansionista, com tenções de invadir a Terra. A mini-série vendeu bem e Hawkman tornou a ser publicado regularmente entre 1986 e 1987, mas uma certa Crise pelo meio e o subsequente cancelamento da publicação levariam a que a personagem fosse reiniciada na mini-série de luxo Hawkworld (1989), que repensou radicalmente a mitologia do Gavião e que se viria a tornar na versão de maior sucesso da personagem até então. Uma ideia original de Timothy Truman, Hawkworld pegou na Thanagar expansionista que Isabella idealizara, enfatizando a luta de classes de um povo opressor que convivia com as raças que conquistara, e fez de Katar Hol um livre-pensador contra o sistema em que nascera, veiculando copiosa crítica social nas suas páginas. Esta nova encarnação foi tão bem recebida, que à mini-série seguiu-se a série Hawkworld, na qual Katar e Shayera, agora apenas parceiros, viajam para a Terra em busca de um criminoso foragido. Durante as suas aventuras, são expostos à Constituição americana, e os contrastes entre a sociedade thanagariana e terrestre fazem parte importante da série. Originalmente concebida para recontar a origem do Gavião no universo pós-Crise, o sucesso de Hawkworld levou a que se decidisse que estava a decorrer no presente, mas havia ainda décadas de história do anterior Gavião a considerar, porque não só ele continuara a existir, como também se viria a descobrir que Carter Hall (o Gavião não-alienígena da Idade do Ouro) também ainda existia em resultado da fusão das Terras Infinitas. Houve várias tentativas para colmatar essa falha, incluindo a hipótese de o Katar Hol da Idade da Prata ter sido apenas um agente infiltrado thanagariano, mas cada adenda parecia apenas complicar mais ainda a mitologia do Gavião, até que houve uma derradeira tentativa de unificar tudo em Zero Hour (1994) quando todas as encarnações e a Moça-Gavião da Idade do Ouro foram fundidas num deus-falcão thanagariano que partilhava as memórias de todos. Contudo, as complicações não acabariam aí. O deus-falcão seria descartado pouco depois e a alma de Shiera Hall, a primeira Moça-Gavião, reencarnaria no corpo de uma jovem suicida chamada Kendra Saunders, a sua sobrinha-neta. O Gavião permaneceria esquecido no limbo editorial durante alguns anos, até regressar nas páginas de JSA #23 (2001), cabendo a Geoff Johns e David S. Goyer a tarefa de simplificar a personagem sem prescindir do seu imenso legado narrativo. Ao que parecia, a alma de Carter Hall fora capturada por um culto thanagariano, que posteriormente o ressuscitou num ritual em que a presença de Kendra Saunders provou ser determinante. Este novo Gavião retinha todas as memórias das suas vidas passadas, e a sua história era a seguinte: tudo começou com o príncipe egípcio Khufu, que descobrira uma nave espacial do planeta Thanagar, cuja fonte de energia era o tal «metal enésimo», que fundiu a sua alma à da sua amada Chay-Ara. Quando foram mortos às mãos do sacerdote Hath-Set com uma faca feita desse mesmo metal, tornaram-se vítimas de uma maldição que os condenou a renascerem e serem mortos por reencarnações do vilão num ciclo sem fim. Após várias vidas, Khufu reencarnaria no arqueólogo Carter Hall, que se inspirou no deus Hórus para assumir a identidade de Gavião, e assim se reiniciava a história, aglutinando todas as encarnações da personagem numa só, uma espécie de psicopompo para as almas dos seus predecessores.

E assim chegamos ao presente volume, no qual Geoff Johns e o talentoso Rags Morales exploram esta nova vida do Gavião, um herói cuja mitologia foi tremendamente influente, seja pelo facto de o metal enésimo vir a servir como liga metálica para os anéis de voo da Legião dos Super-Heróis no futuro, pelo papel que Thanagar teve em várias guerras intergalácticas, ou pelo filho que Carter e Shiera Hall tiveram e que se tornou num dos mais importantes místicos da DC. Já este novo Gavião tem uma particularidade que o destaca dos seus predecessores: a de um homem vergado pelo peso de memórias milenares e torturado pela presença da sua alma gémea no corpo de uma mulher que mal o reconhece. Haverá melhor exemplo que este para a pluridiversidade de interpretações das personagens dos comics, tanto a nível narrativo como meta-ficcional? Seja ele um deus alienígena, um polícia de outro planeta, um cientista que colecciona armas ou um príncipe egípcio reencarnado, o Gavião é ao mesmo tempo o expoente máximo do conceito de legado narrativo no Universo DC, e um hino à adaptabilidade das personagens deste meio.