Conforme fui explicando ao longo dos anos, através de várias entradas, não me foi possível concluir o Felizes Viveram Uma Vez no formado almejado, nem sequer nos formatos improvisados que me foram ocorrendo. Assim, optei por contar aqui o resto da história, de forma abreviada, para ao menos não deixar pendurados os leitores que lhe deram uma oportunidade. O meu muito obrigado pela vossa confiança, companhia e paciência nesta aventura que me é tão cara, e que infelizmente não fui capaz de lhe pôr o termo desejado. Fica então aqui registado para a posteridade o que já tinha adiantado na escrita, com o resto quase praticamente copiado e colado dos apontamentos do meu mapa narrativo para aquele que teria sido o terceiro e último volume: Contos de Malfadadas.
No rescaldo do encontro com o Matador, o grupo acampa, e Aprendiz forma um perímetro de espíritos para ficarem de guarda. Capuchinho comenta que ainda bem que o Burra não ouviu que a «responsável» é uma mulher. Borralheiro pondera a ligação entre Tiago e os «outros» de que a Mãe Gansa lhe falou e decide ficar ele com a orelha do Diabo enquanto Burra não recupera.
No dia seguinte, o grupo parte, seguindo a direcção indicada pela chave de Borralheiro para uma forma de chegarem à lua. Burra está estável, mas continua muito debilitado e tem de ser carregado pelos espíritos de Aprendiz. Borralheiro sente-se tentado a usar a orelha do Diabo para tentar saber quem é a «ela» referida pelo Matador, e debate com a sua sombra. Depois, também devido às palavras do Matador, questiona Vasilisa quanto à natureza da sua caveira e ao facto de esta se alimentar de maldade. Vasilisa pede desculpa a Aprendiz pela queimadura e pergunta se pode dormir com ele, que não sente calor humano há tanto tempo
Seguindo a direcção indicada pela chave de Borralheiro, chegam a uma cidade fronteiriça que se encontra ocupada sob lei marcial por um grupo conhecido como o Bando do Tolo (baseado no conto de fadas O Navio Voador). Nesta versão da história, o Tolo não tem mão nos seus companheiros, que causam a ruína para onde quer que os leve no seu navio voador. O Comilão devora tudo, trazendo a fome; Beberrão bebe tudo, tornando locais áridos; o Neveiro espalha a sua palha mágica, trazendo consigo o frio e o gelo; o Orelhudo ouve tudo o que a população diz e é uma vigilância em massa de um homem só; o Corredor é incrivelmente rápido e espalha o terror; o Arqueiro é capaz de acertar em qualquer alvo com o seu arco; e o Madeireiro cria exércitos de soldados de madeira.

O navio voador é claramente o que a chave de Borralheiro estava a indicar, mas este quer ser mais cauteloso e decide investigar para saber umas coisas sobre Dom Twardowski antes de irem à lua. As gentes locais mostram-se pouco faladoras, pois Tolo & cia. têm a cidade sob lei marcial, mas lá conseguem saber fez um pacto com o Diabo, e que que o Grimmório foi o livro arcano que com a ajuda deste escreveu. O assunto do Diabo levanta questões interessantes com a orelha de Burra, que já recuperou, mas ainda está algo combalido. Antes que possam decidir o que fazer, o Orelhudo escuta a conversa deles, e o grupo de Simplório monta-lhes uma emboscada.
Com Burra ainda uns furos abaixo da sua condição, o combate não é fácil. O Tolo, coitado, só quer que os seus companheiros não magoem ninguém, mas o poder subiu-lhes claramente à cabeça, e não toleram a presença de ninguém que os possa tirar do poleiro. Comilão, Beberrão e Orelhudo não são particularmente úteis num combate, mas o Corredor, o Neveiro, o Arqueiro e o Madeireiro fazem trinta por uma linha com o grupo. No final, Burra desfere um golpe com o seu espadão no chão para desequilibrar o Corredor com o abalo, esmagando-lhe a cabeça com um pisão a seguir; Borralheiro (imune ao frio desde o beijo da Rainha do Gelo) salva Capuchinho de morrer congelada pela palha do Neveiro e esta arranca-lhe a garganta à dentada; a caveira de Vasilisa incinera o Arqueiro; e Aprendiz invoca espíritos que possuem a hoste de madeira do Madeireiro.
No rescaldo, Borralheiro lembra-se de pedir a Orelhudo, que foi poupado após o combate, que use o seu poder em busca da responsável pelo que aconteceu ao mundo. Tal como aconteceu quando Borralheiro fez um pedido semelhante ao espelho da Rainha Má, também Orelhudo acaba vitimado pela pura insânia e maldade que ouve, enlouquecendo à frente do grupo e ficando reduzido a uma carcaça balbuciante. Agora que têm o navio voador do Tolo, decidem descansar e começar os preparativos para a viagem à lua.
Devidamente recuperado, o grupo prepara-se para partir a bordo do navio voador do Tolo, quando ouvem a já familiar trompa do Matador. Sem mais delongas, zarpam rumo à lua, e Orelhudo, que ficou para trás, acaba executado pelo Matador. Durante o voo, à medida que se aproximam da lua, Capuchinho começa a ficar descontrolada, e os outros têm de a agrilhoar.

Uma vez chegados à lua, são logo recebidos por Dom Twardowski e o seu servo, um misto grotesco de homem e aranha. Este sabe ao que vêm e abre logo as hostilidades. Com Capuchinho indisponível e o ainda convalescente Burra ocupado com o servo aracnóide, cabe a Borralheiro, Aprendiz e Vasilisa haverem-se com o feiticeiro, que «apaga» a caveira desta última e é claramente um mestre em comparação com o literal e figurativo Aprendiz. No fim, Borralheiro morde a orelha do Diabo para o soltar, fiando-se na ânsia deste de se vingar de Twardowski, e o grupo foge então com o Grimmório, deixando o feiticeiro à sua infeliz sorte com o Diabo, que fica aprisionado na lua.
Na viagem de volta da lua, Vaslisa torna a acender a sua caveira, que desperta com o ódio reprimido que ela dentro de si guarda. Enquanto isso, agora com o Grimmório em sua posse, Borralheiro tem o conhecimento nas pontas dos dedos e orienta-se através dos versos que leu na cabana da Mãe Gansa:
Terás de consultar o espelho
Para saber onde encontrar o cristal
Com o qual deverás ler o livro
Que te permitirá encontrar os ingredientes
Para o unguento capaz de trazer de volta
As memórias daquela que se lembra…
Graças a eles, consegue finalmente apurar o que é o tal «unguento capaz de trazer de volta as memórias daquela que se lembra»: o Basilecão. Para o criar, precisará dos seguintes ingredientes: uma flor que promete o melhor, lágrimas de um inocente arrependido e uma maçã que cura maleitas. Sem qualquer outra orientação, opta por fazer a coisa pela devida ordem e decide que vão primeiro em busca da flor, o caminho para a qual é indicado pela chave de Borralheiro.
Durante a viagem para o seu novo destino, Vasilisa pergunta a uma ainda agitada Capuchinho se lhe pode entrançar o cabelo, coisa que costumava fazer às suas meias-irmãs, os únicos momentos em que elas não a tratavam mal. Capuchinho fica meio sem jeito e acede, aproveitando para mandar umas bocas a Aprendiz por este não atar nem desatar quando Vasilisa claramente tem um fraquinho por ele.
Quando chegam a uma misteriosa floresta de cobre, Capuchinho dá graças por estar novamente em terra firme e faz de conta que nada se passou, embora Borralheiro tente abordar o assunto. O grupo parte em busca da tal flor que promete o melhor e encontra renques de flores que começam a falar com eles com vozes suaves, cada uma prometendo algo mais maravilhoso a quem a colher. Borralheiro faz batota e usa a chave, que lhe indica qual a flor a colher, mas nem mesmo assim se safa das consequências, pois o guardião do bosque, a quimérica welwa, surge então para punir quem teve o desplante de mexer nas suas flores.

A welwa é um osso duro de roer, imune ao fogo da caveira de Vasilisa em virtude de ser uma simples fera desprovida de qualquer mal. Ainda assim, com algum trabalho em equipa, o grupo acaba por vencê-la e pira-se dos bosques sem mais delongas, munido com a tal flor que «promete o melhor».
Durante a viagem, enquanto ele e os outros lambem as feridas, Borralheiro tenta perceber onde pode arranjar as «lágrimas de um inocente arrependido», e a sua fiel chave indica-lhe ninguém menos do que Vasilisa. O que faz sentido, tendo em conta que ela é inocente e se arrepende amargamente do que a sua caveira fez. Lembra-se então de lhe perguntar por que motivo a caveira dela não consegue pegar fogo a objectos (tendo em conta que pegou fogo a uma cidade inteira). Vasilisa explica-lhe que a sua mãe odiava a sua casa e a cidade onde o marido conhecera a madrasta, razão pela qual a caveira as pôde queimar.
Borralheiro tem então uma ideia e, antes que a rapariga possa reagir, ele cobre a caveira com um saco, impedindo-a de fitar quem quer que seja, e tenta a custo ser mau com ela, atirando-lhe algumas verdades à cara para a fazer chorar. Aprendiz não acha grande piada à coisa e intervém, invulgarmente assertivo, mas não antes de Borralheiro colher lágrimas de Vasilisa e tentar em vão explicar o porquê de ter feito o que fez. Antes que a situação se possa empolar demasiado, porém, surge do nada um ifrite que, sem sequer se apresentar, teletransporta-os e ao navio dali para fora.

De repente, o grupo vê-se num lugar completamente diferente, dentro de uma ampla e luxuosa sala ricamente decorada. A arquitectura é oriental, e os cheiros são exóticos, mas além deles e da estranha criatura que ali os trouxe, encontra-se apenas uma jovem mulher de pele morena e cabelos negros cor de azeviche. A mulher não é outra senão Morgiana, a serva de Ali Babá, que rapidamente explica que cometeu o erro de abrir a garrafa onde o ifrite estava aprisionado, convencido de que ele lhe daria três desejos. Infelizmente, o único desejo que este ifrite em particular concede é a forma como se morre. Morgiana explica então que, munida de um tubo de marfim mágico, procurou o único homem que não a mataria (uma impossibilidade no mundo em que vivem, achou) e, ao avistar Borralheiro, mandou o ifrite ir buscá-lo, exigindo ser morta por ele.
Intrigado pela forma como o tubo de marfim funciona e vendo as parecenças com a sua própria chave, Borralheiro fica meio sem jeito a olhar para Morgiana, partilhando com esta um rápido momento silencioso em que vê nos olhos dela um lampejo da argúcia e inteligência que sempre o atormentaram por lhe terem permitido perceber o que se passava com o mundo. Porém, não há tempo para falar, e o ifrite ordena a Borralheiro que mate a jovem. Este recusa, tal como esperado, e o grupo ataca o ifrite, mas a coisa corre mal. Capuchinho queima as mãos e o pêlo ao tentar atacá-lo, Burra vê-se incapaz de o ferir mesmo com o seu espadagão e acaba projectado para longe, Vasilisa consegue apenas magoá-lo um pouco com o fogo da sua caveira, Aprendiz é incapaz de o vergar à sua vontade, e os disparos de Borralheiro surtem pouco efeito. A criatura fica com as vidas dos companheiros de Borralheiro nas suas mãos, tendo claramente demonstrado que os pode eliminar facilmente, e dá-lhe uma escolha: ou mata Morgiana, ou morrem todos.
Sem tempo para mais, Borralheiro reflecte brevemente acerca do que Morgiana lhe contou acerca do ifrite e dos desejos que este concede e pede-lhe uns momentos para rezar e fazer as suas pazes com o Senhor por aquilo que está prestes a fazer. O ifrite concede-lhe esses momentos, e Borralheiro aproveita para conferenciar com Borralho, a sua sombra, congeminando então um plano com ele. Ao levantar-se, faz com que Borralho se separe dele e explica que é a sua sombra e que, como tal, faz parte dele. Diz ao ifrite que quer pedir um desejo para matar Morgiana. Este concede-lho, e o desejo é o seguinte: quer que Morgiana morra pela acção que a sua sombra desejar efectuar. Por sua vez, Borralho diz que deseja matar Morgiana somente através de uma acção que não deseja efectuar.
Preso em tal armadilha lógica, o ifrite fica confuso e sem saber o que fazer. Borralheiro aproveita a distracção dele para lhe atirar a palha gelada do Neveiro, que faz a criatura começar a exalar vapor por todos os orifícios. Os outros acabam assim libertos e atacam a criatura em conjunto, acabando por destruí-la com os seus ataques combinados e salvando Morgiana do seu destino. Esta fica extremamente grata a Borralheiro, no qual parece ver uma alma gémea, mas o grupo rapidamente percebe que a jovem é bem mais do que uma donzela em apuros.

Muito pelo contrário. Neste mundo, a antiga escrava do falecido irmão de Ali Babá subiu na vida, e de que maneira. Na história original, é praticamente ela a heroína, e Ali Babá fica com todos os louros. Desta feita, porém, foi ela quem assumiu as rédeas da situação, matando Ali Babá, apoderando-se do tesouro e ressuscitando os 38 ladrões por ela mortos como ghouls que agora a servem como uma guarda pretoriana morta-viva. Possui também o tal tubo de marfim, uma carpete voadora e uma maçã capaz de curar maleitas, e graças a tais recursos e à sua inteligência, conseguiu algo de inédito naquele mundo em que todas as histórias parecem ter acabado mal: garantiu um final feliz para si mesma. À custa de alguns, é certo, mas também não é uma tirana e parece realmente ter conseguido criar um cantinho de paz e estabilidade em que as coisas nem parecem tão mal assim. A coisa só ia dando para o torto quando foi demasiado gananciosa e tentou a sua sorte com o ifrite, mas agora que está tudo bem, o grupo é mais que bem-vindo a permanecer ali.
Todos ficam admirados com o que vêem, encontrando-se pela primeira vez em aparente paz e segurança. O reino de que Morgiana se apoderou através da astúcia é regrado, limpo e aparentemente seguro – um verdadeiro oásis de serenidade no mundo conturbado que o grupo desde sempre conheceu. Burra está desconfiado, como é seu apanágio, mas Aprendiz parece convencido, e Vasilisa e Capuchinho deixam-se apaparicar pelos eunucos de Morgiana, que lhes dão banho.
Enquanto isso, Borralheiro e Morgiana falam, profundamente intrigados um pelo outro, cada um sentindo que encontrou a sua alma gémea. Ele explica a Morgiana a missão da qual foi incumbido, e esta mostra-se curiosa quanto às aventuras pelas quais o grupo passou e aquilo que apuraram acerca do mundo. A conversa puxa para a chave de Borralheiro, que revela que a tal «maçã que cura maleitas» para o Basilecão é a maçã usada por Morgiana, e «aquela que se lembra» parece também estar em posse dela. A jovem começa então a fechar um pouco o jogo e contrapõe que um mundo no qual uma escrava consegue dar a volta por cima e tornar-se rainha não pode ser tão mau assim. Borralheiro nota o traço de ambição que nela se revela, mas também não consegue contrapor o argumento, e a conversa morre um pouco por aí enquanto o grupo desfruta da aparente paz e harmonia do reino de Morgiana.
Borralheiro e os outros desfrutam de sossego e da boa vida de que já não tinham memória, cada vez mais convencidos dos méritos de tirarem o melhor partido possível de um mundo que se virou contra eles. Só Borralheiro se mostra algo insistente, e Morgiana acaba por lhe fazer a vontade, mostrando-lhe «aquela que se lembra», que é nada mais e nada menos do que Xerazade, das Mil e Uma Noites, que neste mundo não conseguiu persuadir o rei Xariar a não a matar e decapitar. Porém, o conhecimento dela é bem real, e Morgiana conservou a cabeça decapitada dela para tirar proveito do que ela sabe acerca das histórias, porque se lembra de muitas delas, embora as suas memórias pareçam estar fracturadas e corrompidas. Portanto, o Basilecão será o «unguento» capaz de trazer de volta as memórias dela.
Borralheiro garante a Morgiana que não fará nada, sobretudo quando esta mostra activamente o seu interesse por ele e os dois passam a noite juntos, certa de que o convenceu a não comprometer o frágil equilíbrio que ela conseguiu no seu reino. O mundo pode ser cruel e imperfeito, mas ela conseguiu criar nele um oásis à custa de muito esforço e sacrifício, e pede-lhe que ele não deite tudo a perder. Porém, Borralheiro fica com a pulga atrás da orelha e sente-se atormentado, porque sabe que, fora das muralhas do reino de Morgiana, há incontáveis pessoas a sofrer porque tiveram os seus destinos roubados por um qualquer incidente, e agora tem por fim a possibilidade de perceber o que aconteceu.
Por mais que lute contra isso, e por mais intrigado e atraído que se possa sentir por Morgiana e pela proposta dela de tirarem o melhor partido possível do mundo tal como ele ficou, Borralheiro acaba por não resistir. Certa noite, com a ajuda de Aprendiz, vai sorrateiramente buscar a maçã que cura maleitas, o último ingrediente para o Basilecão, que prepara às três pancadas, e então dirige-se à câmara onde está guardada a cabeça de Xerazade.
Porém, quando lá chega com Aprendiz e tira a cabeça do recipiente onde esta está guardada, depara com uma cilada montada por Morgiana, que ali trouxe os seus 38 ghouls. Mostra-se desiludida, embora não surpreendida, e revela que foi Borralho quem o traiu, seduzido por ela quando se deu conta de que Borralheiro não iria mudar de ideias e não seria capaz de resistir à tentação de resolver os problemas de todos, mesmo que para isso destruísse tudo o que ela ali criou. Borralheiro saca do seu revólver, mas percebe que este está sem munições e que estas foram sorrateiramente retiradas por Borralho. É então que revela que já se tinha dado conta do desaparecimento da sua sombra, e Burra, Capuchinho e Vasilisa entram então em cena. Fica assim montado o palco para o confronto final, uma luta que ninguém desejava, mas que todos percebem ter sido inevitável… quando são interrompidos pelo toque de uma trompa.

O Matador surge, então, e começa a chacinar os ghouls, cortando-os às postas com ataques fulminantes enquanto anuncia que deu a Borralheiro tempo o suficiente, mas que está na hora de acabarem com aquilo. Antes que qualquer um do grupo possa agir, o Matador foca-se naquela que julga ser a maior ameaça e ataca a caveira de Vasilisa, que corta ao meio com um só golpe, destruindo-a. A rapariga grita e parece ficar em choque, e Matador só não chacina os restantes presentes porque a cabeça de Xerazade se pronuncia e o identifica como o Mata-Gigantes, levando-o a parar por momentos.
Ao retirar o seu manto de escuridão, revela-se e permite-se um monólogo, no qual reflecte acerca da pessoa que foi, tal como identificado por Xerazade, repete o que já dissera a Borralheiro no seu primeiro encontro, para explicar o porquê de ter feito o que fez. Graças ao seu chapéu do conhecimento, deduziu que algo se passara com o mundo, que então palmilhou com as suas botas devoradoras de léguas até encontrar a responsável, que tencionava vencer com a sua espada que tudo corta. Reconsiderou, porém, ao perceber o efeito corruptor que esta tinha, e optou então por matar todas as «histórias» para que estas pudessem ser reiniciadas, tal como no passado matara todos os gigantes para tornar as suas terras mais seguras.
O monólogo de Matador acaba por ser interrompido por Vasilisa, que assusta Aprendiz ao despertar do seu choque. Os olhos dela luzem com um verde virulento, e Borralheiro percebe então que ela estivera até então a usar a caveira como mera conduta para o seu ódio. Sem esta, a intensa animosidade e o ressentimento da rapariga manifestam-se em todo o seu esplendor, e cintilantes chamas verdes de pura grima começam a manar dela.
Antes que Matador possa fazer o que quer que seja, Vasilisa incinera-o com o seu olhar, carbonizando-o e às suas roupas, e apenas a espada dele é poupada. Dá-se então início a um verdadeiro holocausto, no qual a rapariga começa a consumir a cidade de Morgiana com chamas, tal como a caveira o fizera com a sua própria cidade, e Borralheiro é forçado a agir antes que ela destrua tudo, tentando usar o Basilecão na cabeça de Xerazade. Morgiana não lhe permite, contudo, convencida de que, juntos, ainda poderão arranjar forma de salvar a sua cidade sem deitar tudo a perder, e coloca-se ao lado de Borralho entre ele e a cabeça, desembainhando a faca com que matou o líder dos 40 ladrões.
Borralheiro sente o coração partir-se nesse momento, mas percebe que não tem escolha. Com um último olhar para Morgiana, fita então Borralho e revela-lhe o seguinte: ao ter feito o desejo, a sua sombra criou um paradoxo auto-realizável. O desejo de matar Morgiana através de uma ação indesejada é, em si mesmo, uma ação indesejada, porque a condição torna impossível desejá-la genuinamente. Portanto, a condição foi cumprida no momento em que as palavras foram proferidas. Morgiana já está morta, só que ainda não se tinha dado conta disso.
Borralho queda-se silencioso, e Morgiana fica a olhar para Borralheiro com ar chocado, sentindo-se desfalecer. Sorri-lhe uma última vez e elogia novamente a inteligência dele, que tanto a fascinou desde o início, e então cai morta. Borralho está aturdido, e deixa-se intimidar quando Borralheiro, com lágrimas a correrem-lhe livremente pelo rosto, lhe diz que lhe saia da vista. A sombra assim faz, e Borralheiro unge então a cabeça de Xerazade com o Basilecão, trazendo assim de volta as memórias daquela que se lembrava das histórias. Enquanto o palácio de Morgiana arde com fogo verde e o resto do grupo tenta haver-se com Vasilisa, um clarão branco encandeia-os a todos.
Quando tornam a conseguir ver, o palácio continua escavacado e queimado, mas parou de arder, e tudo parece ter voltado ao normal. Mais – tudo parece ter voltado ao que era… ou quase. Burra sente-se atormentado por tudo o que fez, Capuchinho não acredita naquilo em que se tornou, Aprendiz arrepende-se da forma como logrou os seus conhecimentos mágicos, e Vasilisa parece em choque. Por sua vez, Borralheiro pranteia em silêncio, destroçado por dentro. Não soluça e fala normalmente, agindo com toda a compostura, mas as lágrimas escorrem-lhe de forma aflitiva e incessante. Todos sabem agora quem verdadeiramente eram, mas as histórias continuam enrodilhadas, e nem tudo está como devia estar.
A cabeça de Xerazade revela-lhes então quem corrompeu as histórias: a Carochinha. A literal história da Carochinha. Não a versão incompleta que muitos conhecem, mas a autêntica. Uma história que se espalhou para além do reino onde inicialmente ocorreu e foi gradualmente corrompendo as demais, num efeito dominó que acabou por virar do avesso a natureza cíclica das narrativas. Xerazade explica que o efeito da Carochinha ainda se faz sentir e não foi afectado pelo facto de ela se ter lembrado das demais histórias, que provavelmente acabarão novamente corrompidas por ela. Enquanto a Carochinha não for purgada, nada poderá ser verdadeiramente reiniciado. Borralheiro recorda-se do que o Matador lhe tinha dito, que julgava ser capaz de vencer quem corrompera as histórias com a sua espada que tudo corta, e vai buscar a arma para a levar consigo antes de partir com os outros a bordo do navio voador.
O paradigma está agora invertido, pois é Borralheiro quem se tornou frio e empedernido, escorrendo lágrimas copiosamente sem verdadeiramente chorar, e os outros estão desolados e arrependidos de tudo o que fizeram e disseram. O mundo está um autêntico pandemónio, agora, pois a ordem periclitante que se formara a meio do caos das histórias corrompidas foi desfeita, e o grupo sobrevoa tudo sem intervir até acabar por encontrar o único foco de corrupção que resta e que já se começa a alastrar, tendo como seu epicentro uma singela casinha, em redor da qual há cântaros quebrados, pássaros que arrancaram os olhos, uma fonte seca, um pinheiro desenraizado, uma trave quebrada e uma porta a abrir e a fechar. Ao ver os cacos emocionais a que os seus companheiros foram reduzidos, Borralheiro propõe-se ele a tratar de tudo e, munido com o cordel da Mãe Gansa numa mão e a espada do Matador na outra, entra na casinha da Carochinha.
Sentindo-se corromper aos poucos, Borralheiro enrola o cordel da Mãe Gansa na mão e agarra-o com força para não perder o literal fio à meada. Aquela com a qual depara é uma jovem com uma capa vermelha pintalgada de preto, uma rapariga que podia em tempos ser bonita, mas cujos olhos inchados e vermelhos de tanto chorar e feições pálidas e assombradas a tornam assustadora. Um caldeirão ainda fumega com os restos do seu amado João Ratão, cuja morte deturpou o amor puro que a Carochinha por ele sente e o tornou numa força corruptora que a tudo toca. Não é possível grande conversa, pois a Carochinha está destroçada e não tem interesse em falar com ninguém, ameaçando fazer Borralheiro perder o juízo só pelo facto de estar a olhar para ela e a ouvir o seu choro. Certo de que estará a livrar o mundo de uma ameaça perdida e irredimível, Borralheiro ergue então a espada do Matador e prepara-se para acabar com o sofrimento da jovem.
É então que, a meio do golpe, Borralheiro lembra-se das palavras da Mãe Gansa, de esta lhe ter pedido que praticasse o bem e que fizesse boas acções, que talvez pudessem vir a fazer a diferença. E percebe: não foi a Carochinha quem corrompeu o mundo, mas o amor puro dela que foi deturpado e transformado numa força perversa e insidiadora. Se a matar, estará apenas a perpetuar o ciclo, pois o amor dela perdurará certamente para além da morte. E a espada do Matador é a espada que tudo corta.
Travando o golpe a tempo, a espada fica diante da indiferente Carochinha, e Borralheiro ajusta o pulso e desfere um corte descendente entre a jovem e o caldeirão com os restos do João Ratão, «cortando» o amor que ela sente pelo seu amado. A Carochinha pisca os olhos e fica a olhar para ele com o ar aturdido de quem não percebe o que acabou de acontecer. A casinha começa a tremer, o céu principia a luzir com luzes estranhas, e há algo no ar que só pode ser descrito como um vórtice que se forma. Borralheiro diz-lhe que lamenta muito pelo que lhe aconteceu e sai da casinha a correr para ir ao encontro dos outros, que estão assustados a olhar em redor para um mundo em convulsão. Borralheiro estende-lhes a mão na qual tem enrolado o cordel da Mãe Gansa e diz-lhes que pousem as suas sobre a dele, para que não percam o fio à meada. Agradece-lhes pela sua companhia e camaradagem e diz-lhes que não tenham medo, porque sabe que felizes viveram uma vez e que tornarão a sê-lo. E, então, o mundo parece colapsar sobre si mesmo
…
Burra desce ao poço das princesas e, desta vez, consegue salvar uma delas, que revela ser a Carochinha. Os dois apaixonam-se na hora, e nota-se logo que dali vai sair casório.
Vasilisa está novamente com a madrasta e as meias-irmãs. Estas não são tão cruéis quanto antes, mas ela continua a ser a mal-amada após a morte do pai e a ser criada delas. Porém, agora tem um amigo: todas as noites, quando lhe cabe tratar das lides da casa, Aprendiz surge à janela e invoca espíritos que deixam tudo num brinco enquanto os dois ficam a namorar, com promessas de fugirem em breve.
Capuchinho está a caminhar pelo bosque com o seu cesto, quando é abordada pelo Lobo. A conversa parece mal encaminhada quando, do nada, uma machadinha guina pelo ar e se enterra na cabeça do Lobo, escachando-lha. Capuchinho vira-se, assustada, e vê surgir das árvores um jovem caçador que se apresenta como Borralheiro ao dar-lhe a mão.
Para sempre não viveram, de certeza… mas viveram felizes, isso sim.
FIM
