O Perraultimato

As estórias são conhecidas de todos: sapatinhos de cristal, maçãs envenenadas, príncipes encantados e lobos maus; e todos sabem que, no fim, os que mereciam viveram felizes para sempre. Então porque é que isso não aconteceu? Porque é que o mundo parece virado do avesso? E porque é que toda a gente age como se nada fosse? São essas as perguntas que atormentam Borralheiro, um dos poucos que sentem que algo de profundamente errado se passou, e o único que se predispõe a ir em busca de respostas. Respostas essas que lhe chegam às mãos na forma dos versos crípticos do misterioso Perraultimato, que o lança numa demanda em busca da verdadeira essência das estórias. Acompanhado por quatro outras figuras do imaginário popular europeu —a imprevisível Capuchinho, o enigmático Aprendiz, a atormentada Vasilisa e o perigoso Burra — Borralheiro embarca numa inesquecível aventura neste primeiro volume da distopia folclórica Felizes Viveram Uma Vez.

Como superar a ressaca de uma série na qual se investiu mais de metade da vida? Saltar para outra provou ser uma das soluções (uma abordagem igualmente válida para outras situações na vida, diga-se). A ideia-base para esta nova aventura já vinha muito de trás, plantada pelas estórias que a minha mãe me contava em criança, nas quais misturava contos de fadas com personagens de banda desenhada e desenhos animados. Era uma salgalhada de todo o tamanho, e embora facilmente entretido como qualquer rapaz hiperactivo ao qual se dava um mínimo de atenção, em retrospectiva lembro-me de ser muito exigente com o fio narrativo e a continuidade, pois interessava-me sobremaneira a forma como personagens tão díspares e de mundos tão diferentes interagiam umas com as outras numa situação num meio ao qual nenhuma delas estava habituada.

Fui portanto fantasiando ao longo dos anos acerca desses encontros improváveis, tomando umas notas aqui e ali, reunindo material até achar que o projecto tinha pernas para andar quando pudesse pegar nele. Como já antes me tinha acontecido, a estória começou a ganhar vida própria e foi-se desenvolvendo muito para além do objectivo inicial, que era simplesmente o de contar uma aventura na qual personagens de contos diferentes se encontravam. As ideias atropelavam-se e canibalizavam-se umas às outras, e o na altura ainda hipotético livro ganhou assim um rumo algo inesperado. O que eu decidi fazer com Felizes Viveram Uma Vez (além de arranjar forma de meter «era uma vez» e «viveram felizes para sempre» no título, bem entendido) foi explorar o riquíssimo manancial de ideias dos contos populares com a premissa de que as estórias – durante o curso da sua natureza cíclica – acabaram muito mal, sim, mas por uma razão. Uma razão que todos desconhecem, mas de cujas consequências um lote selecto de indivíduos se apercebeu.

Um desses indivíduos, um rapaz que dá pelo singelo nome de Borralheiro, vê-se forçado pelas circunstâncias a tentar resolver esse mistério do qual mais ninguém parece estar ciente, isto enquanto tenta desesperadamente sobreviver num mundo que para ele não faz qualquer sentido. A ele juntam-se quatro outras figuras atormentadas, cujo final feliz nunca chegou a acontecer e que medeiam no limiar entre aliados e antagonistas, um autêntico bando de depravados, assassinos, almas amaldiçoadas e detentores de segredos negros. E é com elas que Borralheiro terá descobrir o motivo pelo qual as histórias acabaram mal. E rectificá-las, se de todo possível. Mas primeiro terá de sobreviver aos seus companheiros…


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