Nordicismos

Estava então decidido que iria embarcar num novíssimo projecto de BD no rescaldo de mais um volume das Crónicas de Allaryia. Um projecto de BD que partiu – entre outros – de duas das minhas palavras favoritas que quase nunca tenho ocasião de usar: evemerismo, a doutrina que considera os deuses do paganismo como personagens humanas, que por seus feitos mereceram o reconhecimento que os tempos transformaram em culto; e sincretismo, sistema religioso que combina princípios de diversas doutrinas. Dois conceitos para os quais apenas busquei definições após longas e frutíferas conversas com Jörmundur Ingi Hansen, antigo sumo sacerdote da organização religiosa neopagã Ásatrú, um homem que os leitores mais atentos e de memória menos selectiva se poderão lembrar da lista de agradecimentos do Vagas de Fogo.

Curiosamente, muitos dos apontamentos que tomei em resultado dessas conversas tinham um destino bem diferente na altura, pois tencionava usá-los nas Crónicas aquando da queda dos deuses, após a qual se daria uma ascensão de deuses «pagãos» em Allaryia. Essa ideia foi inicialmente abandonada, mas subsequentemente reconvertida para o projecto de BD, do qual começaram rapidamente a brotar nomes e fios de enredo, alguns dos quais derivados de um evento da minha infância que me marcara. Muitos anos atrás, ainda mal teria a minha idade dois dígitos, se tanto, e os meus pais, sempre preocupados em edificar os filhos, levaram-me a mim e ao meu irmão mais novo para vermos O Anel dos Nibelungos. Pouco ou nada me recordo da peça, além de mulheres gordas a cantarem e uma ou outra cena em que houve luta de espadas em palco, após a qual me recordo de tentar fazer chantagem emocional com os meus pais para que eles, em troca da minha presença ali, me comprassem um He-Man com espada que brilhava.

O boneco que nunca cheguei a ter…

Os meus pais não foram na cantiga, e dessa ópera guardei apenas as horas perdidas e o ressentimento de uma criança que não conseguiu levar a sua avante, embora achasse que o merecia. Mas algo mais ficou, pois tão magnífica obra não tem como não deixar uma qualquer impressão residual, mesmo em quem não quer nada com ela; assim, com o passar dos anos, fui aprofundando o pouco que tinha retido d‘O Anel, maravilhado com a sua dimensão musical, estética e também narrativa, sendo esta última a que mais influenciou aquilo em que o meu projecto de BD se viria a tornar. Isto porque, pegando outra vez no tal evemerismo, foi precisamente o confronto entre homens e deuses, o «aterrar» de uma mitologia transposta para disputas dinásticas e o recontar de episódios dela a partir de uma perspectiva mitológico-histórica, foi isso o que espoletou a narrativa a partir das ideias para uma nova história que me tinham ocorrido. Juntando a isto o tal sincretismo, que me foi chamado à atenção pela paixão que o meu prezado amigo Jörmundur Ingi foi desenvolvendo por paralelismos, e sobretudo por mos chamar à atenção, e eu percebi que tinha em mãos uma história que me daria um gozo tremendo contar.

Estava então decidido que o projecto de BD se iria chamar Endurvakning, ou «Renascimento» em Islandês. Não só porque iria tratar de um renascimento literal e figurativo de um panteão após o seu Crepúsculo, mas também porque fora originado pelo «renascimento» de umas sementes plantadas tantos anos antes pelos meus pais. Ah, e também haveria uma espada luzente algures na história, naquele que foi provavelmente o mais mesquinho caso de ressábio a longo prazo da história da literatura.

E com esta alusão à mesquinhez por aqui me fico, pois o que se seguiu deixou o projecto em águas de bacalhau durante anos, e a culpa foi toda minha…