The Triumph of Steel

Há uns meses, falei da máquina de escrever com que me lancei no mundo da escrita e classifiquei essa entrada como “Outros”, como se não passasse de um fait divers. Mas tenho andado a pensar e recordar o passado, sobretudo os eventos e coisas que influenciaram a minha escrita, o acto da própria escrita, ou a vontade de o fazer. Por isso, decidi criar a nova rubrica Anamneses, em que falarei disso mesmo e partilharei convosco os momentos em que começou a tornar-se claro que, a menos que eu escrevesse, provavelmente acabaria por dar em doido.

A primeira entrada é de teor musical, e não será exagero dizer que representou um ponto de viragem na minha vida – a nível de emancipação, se nada mais. Falo de The Triumph of Steel, o sétimo álbum dos Manowar, durante largos anos a minha banda preferida, que eu inclusive cheguei a representar enquanto webmaster oficial de Portugal (uma outra história). Foi o primeiro disco que eu comprei, ainda na velhinha – e agora extinta – Stradivarius do Saldanha, bem como a primeira música que ouvi que ia para além do que passava na rádio, no horário nobre da MTV, e nos walkmen dos meus colegas de escola. Graças a este álbum, fui um percursor do metal no meu ano e tornei-me num formador de opinião musical; foi como se a minha vida passasse a soar de forma diferente a partir de então, e a música das esferas chegava-me aos ouvidos com rasgos de baixo piccolo e gritos dilacerantes a percorrerem todas as nove oitavas.

Não esperava nada disso. Estava só a passear-me pelas prateleiras de discos, sem estar em busca de algo em particular, isto enquanto a minha mãe se ocupava a rechear a sua discoteca para as aulas de ginástica. E foi então que me deparei com uma capa que desde logo me prendeu, a de um guerreiro com feições ensombradas e a empunhar um martelo relampejante e uma espada flamejante com copos tirantes a asas de águia e um pomo em forma de garras de rapina. Fiquei logo rendido, fui pedir ao funcionário que reproduzisse o álbum para ver se a música fazia jus à capa, e, logo naqueles primeiros segundos, sabia que tinha encontrado o que não sabia sequer ter estado à procura.

Mas porquê falar de um álbum de metal naquele que se quer um blogue literário? Porque The Triumph of Steel foi mais que um disco: foi o guião do primeiro épico que contei, com o quarto que na altura partilhava com o meu irmão como palco e este último como meu público cativo. Isto porque, embora as faixas não estivessem nominalmente relacionadas umas com as outras, eu tinha-me convencido de que havia um fio condutor entre elas, a semelhança do Campeão Eterno de Moorcock a reencarnar pelo tempo e espaço. Assim, ao longo de vários espectáculos caseiros, qual temporada na Broadway, o álbum ia tocando em altos berros enquanto eu relatava ao meu irmão o que acontecia, numa saga que passo a detalhar:

A narrativa começa, o tal “Campeão Eterno” está na Grécia Antiga, a participar em momentos da Ilíada, que eu à altura não tinha lido e da qual apenas sabia o básico. Honra e vingança, homens e deuses, sangue e glória. Uma entrada triunfante em cena, como que a preparar o palco para o que aí vem.

Esta faixa não parecia contar qualquer história, por isso sempre serviu na minha cabeça como o genérico da mesma, por assim dizer. À falta de algo melhor para contar ao meu irmão, ia-lhe só lendo os nomes dos membros da banda e equipa técnica e tentava convencê-lo de que a letra dizia “leave the hall”, e não “eat them all”.

E aqui voltamos ao que interessa: uma overdose de fantasia épica pura e dura. Cavaleiros de dragões, feitiços de destruição e invisibilidade, juras de fogo e magia, chamamentos infernais e profecias de morte e renascimento. Porque o tal “Campeão Eterno” morria aqui…

…mas acabava ressuscitado por um xamã índio em plena Guerra Cherokee-Americana. As injustiças e massacres relatados pelo xamã serviram como combustível anímico para o guerreiro, que despertava e ajudava os índios na sua batalha desesperada. Tanto sangue derramado começava a ter o seu preço, contudo.

Existem entidades muito interessadas na alma do tal “Campeão Eterno”. Vozes sinistras que se fazem ouvir enquanto o sangue pinga da sua espada, sussurros de corrupção que lhe são ciciados pelos arquejos de cada homem que ele mata. Isto é capaz de acabar mal…

Mas ele tem uma espada, e um ego enorme. Nasceu para morrer em batalha e ri-se do seu destino. Ainda assim, acaba por se ver sobrepujado por inimigos numa refrega épica de um contra muitos. Por momentos, parece que vai mesmo desta para melhor, mas, num surto de energia e vontade férrea, ergue-se para despachar o serviço e sai vitorioso. Mas, no fim, moribundo, ainda tinha outras contas a prestar, tal como vaticinado na canção sobre os dragões…

O Inferno reclamava aquilo que era seu. O espírito do guerreiro estava agrilhoado aos reinos inferiores, e o Demónio tentava o “Campeão Eterno” com ofertas sedutoras, mas ele resiste e enceta um combate desesperado pela salvação da sua alma. Esta faixa era perfeita para ser contada como parte de uma história, graças aos efeitos sonoros e ao ritmo das guitarras, que me permitia simular os golpes desajeitados de um duelo de espadas que faziam o meu irmão rir. No fim, o combate épico termina com uma explosão.

E assim termina a história, com o Campeão Eterno a ascender após a derradeira morte e a tornar-se no epónimo Mestre do Vento, concretizando assim os vaticínios da canção sobre os dragões. Era também a única música consensual em toda a casa, porque ninguém ficava indiferente ao bálsamo que esta balada representa neste pesado tour de force musical.

Espero que pelo menos alguma das músicas tenham sido do vosso agrado. Se nada mais, espero que este breve recontar daquele que foi o primeiro épico que concebi tenha sido esclarecedor quanto às influências  e impulsos primordiais que culminaram numa vontade insaciável de contar histórias. Agora, se me dão licença, vou ouvir um pouco de The Triumph of Steel, que fiquei com saudades.