Confissão

Hoje tenho uma confissão a fazer-vos, e é algo embaraçosa.

A actual situação que vivemos é, em boa verdade, o paraíso de um escritor com tendência para o isolamento. Afinal, em que outro momento nas nossas vidas nos iremos deparar com tanto tempo em mãos? Podia estar já a escrever o próximo volume das Crónicas, ainda antes de este ser publicado; podia dedicar-me mais a sério a terminar o Felizes Viveram Uma Vez; podia estar a preparar uma série de outras coisas para outros projectos meus que ainda estão na gaveta.

Em vez disso, estou a escrever o argumento de uma epopeia do Super-Homem e da Legião dos Super-Heróis, que já há anos que tenho detalhadamente delineado, mas ao qual praticamente nunca me dediquei, devido às exíguas possibilidades de um dia vir a ser publicado. Estou a escrever uma história com personagens que não são minhas e cujas ideias dificilmente poderei reciclar, porque só faz sentido com estas personagens em questão.

Em minha defesa, não é só isso que estou a fazer – muito pelo contrário. Trabalho em tradução, como muitos de vocês saberão, e houve uma série de fontes de trabalho que “secaram” devido à presente conjuntura, o que me obrigou a procurar outras e a manifestar mais disponibilidade para as que ainda estão bem e de saúde. Por isso não, não estou a passar os dias a escrever sobre super-heróis. Mas as horas que passo a escrever e a planear passo-as a escrever e a planear super-heróis, sim.

É embaraçoso, de tão pueril que é. Mas a musa funciona mesmo assim. Comigo, nunca foi uma vestal com toga grega a tocar harpa para me inspirar – não, a sacana é uma canalizadora mal-encarada e com pêlo na venta, vestida de jardineiras sujas e sempre de chave inglesa em punho para brincar com os canos de sucos criativos. E estou sempre à mercê do que ela escolhe abrir ou fechar.

Para que conste, estou a divertir-me imenso a fazê-lo, e está a dar-me um grande prazer coçar esta sarna que já tinha crosta e da qual praticamente já me tinha esquecido. Só me sinto um pouco culpado porque cheguei a um ponto na carreira de autor em que já se impõe um certo sentido de responsabilidade. Mas a verdade é que, como A Oitava Era ainda nem saiu, sinto que eu próprio ainda não saí da fase de concluir esse volume. Ainda faltam as segundas provas da revisão, e a capa continua por ultimar, o que talvez explique por que motivo me está a ser mais fácil esta «brincadeira» do que começar um outro projecto a sério.

Enfim. Seja como for, e seja para ganhar juízo, fazer obras de canalização criativa ou acabar de coçar sarnas, tempo é que não faltará. Espero que estejam a aproveitar bem o vosso.