Avestruzes

Enquanto roo as unhas em mal contida antecipação da confirmação das novidades que gostaria de vos dar, achei por bem retomar a rubrica «Anamneses». Mas, desta vez, vou falar uma vez mais de avestruzes.

Leitores de longa data deste espaço certamente que não se esqueceram do famigerado Leopoldina e a Ordem das Asas. Não se riam, que foi de longe o projecto de maior envergadura e orçamento em que já participei até à data. E, sem querer virar o bico ao prego, e sob pena de ser acusado de passarinhar trocadilhos, chocar esta ave rara foi uma empreitada que me obrigou a dar asas à imaginação.

Mas agora a sério. Não se riam. Não o posso precisar com certeza absoluta, mas, a avaliar pelos registos de e-mails que tenho, escrevi 119 páginas em quatro dias, com uma directa à mistura no último. Pode não parecer tão impressionante quanto isso, mas convém ressalvar que, além de escrever, também tive de mapear a coisa (o livro segue o saudoso formato das Aventuras Fantásticas) e recordar-me a cada parágrafo que estava a escrever algo para crianças.

Estamos a falar de 2009, sensivelmente três meses após O Fado da Sombra, para terem ideia do ajuste literário que tive de fazer. Houve tempo para me mentalizar, mas nada me poderia ter verdadeiramente preparado para o que me esperava. Costumo usar a analogia de «costurar com luvas de boxe postas», e não está tão longe da verdade quanto isso; qual necessidade de passar um toalhete desinfectante por cada parágrafo, não fosse ele ofender susceptibilidades ou ser demasiado agressivo.

Foi um desafio, isso é certo, e fui bem remunerado pelo meu trabalho. E continuo grato pela oportunidade que me foi concedida, apesar do demasiadamente curto período de desenvolvimento, do facto de a iniciativa não ter vingado junto do público, e de o seu único verdadeiro legado ser o facto de a Leopoldina ter adquirido e conservado uma fisionomia antropomórfica.

Ao que parece, além de a reinterpretação visual e conceptual da mais popular avestruz de Portugal não ter sido muito bem recebida pelo público-alvo, há um bug no livro que impede o leitor de ver a última cena da história (após ambos os finais possíveis, felizmente). Não me perguntem como passou, que aquilo foi revisto por vários pares de olhos, incluindo os meus, mas aceito todas as invectivas de educadores de infância que certamente me foram dirigidas.

Dito isto, uma coisa ninguém me tira do sentido: o grande responsável por o livro não ter vingado foi uma patifa paquidérmica de nome Popota. Não havia nada que eu pudesse ter feito contra o poder ungulado do kuduro progressivo de um hipopótamo fêmea cor-de-rosa que, para mais, estava já numa trajectória de ascensão que lhe permitiria destronar por completo a Leopoldina algum tempo depois.

E o Natal em Portugal tornou-se mais pobre por isso. Porque nunca é bom privar as crianças de escolhas, mesmo que essas não as levem a lado nenhum, como as famigeradas páginas 64 e 94 de Leopoldina e a Ordem das Asas.