O Verão de 1995

Recuando alguns anos da última anamnese, 1995 foi o ano em que as coisas começaram a tornar-se verdadeiramente sérias. Tinha eu 13 anos e já andava com ganas de criar um mundo de fantasia desde os 12, após ter lido e devorado a tal história sobre senhores e anéis. Ou seja, já tinha a cabeça noutro planeta; faltava só detalhá-lo.

Mas não foi apenas o ter lido o livro certo o que criou essa necessidade febril de povoar a minha placa de Petri fantasiosa. Desde sempre que demonstrei uma certa inclinação para a fantasia, inicialmente a de histórias de super-heróis (que volta e meia dá ares da sua graça), mas mais tarde sobretudo a variante medieval. Esta última foi sendo alimentada por anos de um suprimento irregular de filmes e jogos — seguida de um novo e a partir de então bem mais regular hábito: o da leitura — e 1995 foi o ano em que tudo coalesceu. Muito por culpa de uma enciclopédia e o manual de um jogo que levei comigo durante as férias.

É verdade. A Tolkien Bestiary e o manual do Conqueror A.D. 1086. Também levei o Silmarillion para ler, mas sem estes dois, quem sabe se Allaryia teria sequer germinado…

A minha família tinha uma tradição praticamente anual de ir para o Algarve todos os verões, onde passávamos umas duas semanas na Manta Rota, na saudosa Estalagem Oásis que, na altura, o era literalmente. Hoje sou um tipo estranho que se veste de preto e não gosta muito do Verão, mas já fui uma criança relativamente normal que gostava de ondas e areia. Mas, mesmo então, não gostava tanto assim de praia; pelo menos, não tanto como o resto da minha família. Por isso, essas duas semanas costumavam ser mais de pasmaceira na estalagem do que qualquer outra coisa, de horas a fio de ensimesmamento e brincadeira. Mas o Verão de 1995 iria ser diferente.

O primeiro passo foi a travessura de levantar o A Tolkien Bestiary da biblioteca da minha escola poucos dias antes do início das férias (ou então não o devolver a tempo, já não me lembro bem), para poder ficar com o livro durante o Verão inteiro a servir-me de dínamo criativo. Depois, muni-me do manual do Conqueror A.D. 1086, que tinha jogado com afinco ao longo do ano escolar, a par do Warcraft: Orcs & Humans (mais sobre esse daqui a uns parágrafos) e que tinha um manual extremamente expressivo e detalhado, com uma descrição minuciosa das armas e armaduras, bem como da vida quotidiana do medievo. Se o bestiário era a fantasmagoria do irreal, o manual foi a superfície concreta na qual o jogo de sombras fantasioso se podia projectar.

Assim apetrechado, passei um Julho-Agosto de loucuras e devaneios criativos, em que comecei por fim a erigir algo sobre os alicerces de Allaryia. Foi um belo Verão, em que a fantasia permeou cada momento do meu dia e boa parte das minhas noites. A praia era um campo de batalha, as ondas eram os ecos de rugidos de shakarex, e mesmo a apanha das conquilhas (que depois a cozinheira da estalagem tinha a bondade de preparar para a deliciosa entrada do nosso jantar) era mais épica que aquilo a que tinha o direito de ser. As Crónicas de Allaryia nasceram então, embora não na sua derradeira forma, mas naquela que posteriormente veio a ser abreviada no Prefácio d’A Manopla de Karasthan.

Ainda era tudo muito cru e muito tirante a tolkienismos. Um dos vários motivos pelos quais, anos mais tarde, acabei por optar por contar a história do filho de Aezrel Thoryn, e não a do próprio. Provavelmente, não tinha como ter sido de outra forma, até porque, em retrospectiva, parece realmente ter havido um qualquer alinhamento que propiciou tudo: um rapaz que não lia mas tinha uma imaginação fértil sente-a ser espicaçada ao ver na biblioteca escolar um livro sobre um outro livro, lê o livro em questão, sente a imaginação explodir, joga um par de jogos e decide que também vai ele criar um mundo. E o resto é história.

A nostalgia que estou a sentir transpareceu certamente nesta entrada. Razão pela qual, antes de a escrever, fui vasculhar as minhas velhas pastas e dossiês, onde encontrei aquela que podemos considerar a minha declaração de intenções fantasiosas. Vinha claramente com a pedalada do Warcraft, mas já se vê pelo menos um futuro elemento allaryiano (o cavaleiro na águia, que não passou de uma nota de rodapé no Prefácio d’A Manopla).

Por estranho que possa parecer, esta amostra inacabada de uma batalha foi o verdadeiro ponto de partida da minha escrita enquanto processo criativo, em vez do mero passatempo ocasional que já era há alguns anos. Porque me ajudou a perceber que não tinha o talento ou a capacidade necessárias para dar vida à minha imaginação através do desenho, e que teria mesmo de escrever.

(A título de curiosidade, para a malta da jogatana mais velha ou os saudosistas, eu joguei as duas campanhas do Warcraft: Orcs & Humans sem saber que podia premir a tecla Ctrl para escolher várias unidades. Duas campanhas a seleccionar unidades individualmente e a dar-lhes ordens à vez. Duas campanhas inteiras.)