À minha maneira

Hoje gastei boa parte do dia a configurar um programa de tradução assistida por computador, porque tenho na calha umas oportunidades profissionais que assim o requerem. E tive de o configurar, porque uso Linux em vez de Windows. E porque gosto de ter o meu Linux à minha maneira, em vez de aceitar as coisas como elas são e ter uma configuração simples que não entra conflito com novos programas que tente instalar e assegura que tenho todas as dependências de que possa precisar para programas que não uso actualmente, mas que posso vir a utilizar, como é o caso desta nova ferramenta.

Queiram desculpar este preâmbulo a fazer-se de técnico sem verdadeiramente o ser, mas achei apenas que esta situação ilustra na perfeição que realmente gosto de fazer as coisas à minha maneira, muitas vezes em detrimento do meu tempo, conforto e conveniência. Uns diriam «mania que é diferente». «Armar aos cucos/cágados», dirão outros, menos caridosos. «Deixa-te disso», expressarão outros ainda, muitas vezes mais bem-intencionados, vendo o trabalho que me dá e a inadaptação que muitas vezes acarreta. A maior parte fica-se por um simples «merdas à Filipe», do tipo que me fez ser jogador de Xbox num país de Playstation, fã da DC num mundo Marvel, utilizador de Linux num universo de janelas e maçãs, alienado das redes sociais num mundo cada vez mais ligado à tomada, defensor do Telegram (que deviam instalar, a sério), navegador do Brave (idem) e fã inveterado de um género literário que — embora e felizmente se tenha afirmado — continua a ser tido por muitos como algo menor.

Até aqui, tudo bem. Todos conhecemos aquele amigo com gostos e hábitos mais estranhos, certo? E eu realmente sempre senti uma inclinação instintiva para o que está à margem, para o esdrúxulo. Talvez por isso significar que havia menos pessoas com quem interagir, o que, para um jovem extremamente pouco sociável, tinha o seu atractivo. Mas nem todos conhecemos um amigo com gostos e hábitos mais estranhos que permite que os ditos gostos e hábitos interfiram com o seu trabalho e o seu lazer, pelo menos na medida em que o obrigam a gastar muitas vezes o seu tempo para os adaptar às necessidades. Confesso que até me surpreende como é que os meus clientes de tradução não se fartaram de mim, visto que tenho sempre uma condicionante ou um ou dois passos extra a dar para conseguir enviar ficheiros, participar em videoconferências, converter documentos, e às vezes até algo tão simples como receber correio electrónico, porque é Outlook, ou porque tem de ser uma conta Google, ou porque tenho de instalar uma plataforma de gestão baseada na nuvem para verificação adicional, ou o raio que o parta.

Porquê, então? Já não sou um adolescente bicho-do-mato, e acho que até me tornei bastante sociável nos últimos vinte anos (não será exagero dizer que as interacções convosco tiveram um papel importante nessa evolução). Afinal, ser diferente só por diferente ser também não faz o meu estilo, e ainda que seja cristão, não sou propriamente adepto de cilícios. E seria de esperar que um profissional de tradução não criasse tantos entraves e empecilhos a si mesmo naquilo que faz… a menos que houvesse algo mais que estivesse a extrair dessa dificuldade acrescida.

A verdade é que sou um privilegiado. Os meus pais deram-me uma boa vida, nunca me faltou nada (além do He-Man com espada que luzia), e até mesmo a minha entrada no mundo literário foi em grande, com a autêntica passadeira vermelha do Prémio Branquinho da Fonseca a praticamente garantir uma estreia de sucesso. Mas não me sinto culpado por isso, nem se trata de repor o equilíbrio cósmico, complicando intencionalmente a minha vida só porque ela até aqui não foi má de todo. Antes pelo contrário, é apenas uma forma de dar seguimento àquilo que a este ponto me trouxe: um rapaz imberbe que escreveu o que lhe deu na real gana, que levou o seu tempo para o fazer à sua maneira quando ainda nem sabia bem o que ela era, que quis por força que as capas fossem de uma certa e determinada forma, e que foi evoluindo por acreção de erros que teriam sido evitáveis, se tivesse feito as coisas de outra maneira que não a sua (como por exemplo cultivar a sua comunidade de leitores).

Aquilo que concluí é que gosto simplesmente do que requer trabalho extra. Do imperfeito truncado e inacabado que, com um toque pessoal, se torna verdadeiramente (ou mais ainda) nosso ou nos faz sentir que de alguma forma fazemos parte dele, em vez de sermos apenas mais um que o utiliza. É possível que tenha jogado mais Xbox do que Playstation só porque não tinha interesse em jogar com outros, a minha inimizade para com as redes sociais vem de outras lides, e calhou gostar mais dos personagens da DC do que dos da Marvel. Mas as restantes ditas «merdas à Filipe» devem-se mesmo ao facto de que fazer as coisas à minha maneira me estimula e me dá todo um outro sentimento de pertença sobre elas. Bem como uma sensação de dever cumprido que se torna mais saborosa ainda pelo facto de não ter sido fácil, quando podia perfeitamente tê-lo sido.

Parafraseando e fundindo Theodore Roosevelt e Frank Lobdell, não há coisa fácil que valha a pena fazer. Também não sei se iria tão longe assim, mas talvez ousasse desvirtuar as palavras destes dois senhores e dizer que não vale realmente a pena fazer algo, a menos que seja à nossa maneira. Porque isso nos obriga a sermos brutalmente honestos connosco mesmos, nos priva de desculpas para justificarmos quaisquer erros que possamos cometer e nos obriga a fazer uso de todas as nossas faculdades e talentos… ou a descobrir quais eles são.