Práticas de Escrita

Há quase dois anos, fui convidado para orientar o curso Práticas de Escrita III, na FLUL. Foi um desafio muito interessante, que até correu bastante bem, e, embora tenha perfeita noção de que não reinventei a roda, julgo que alguns dos conteúdos poderão ser úteis ou do interesse de quem o tem por escrita de aventura.

Não seria correcto da minha parte publicar aqui o diapositivo que fiz para as sessões, mas julgo que não há qualquer mal em divulgar os apontamentos soltos que tirei para a criação dos mesmos. Fica a faltar o «recheio», mas acho que as notas abaixo ilustram bem o meu método e a forma como encaro a escrita.

Sessão I

• Tudo o que vou dizer pode ser contradito com exemplos de outros autores de sucesso. Mas isso é lá com eles. O que vos vou trazer hoje é a minha perspectiva, que não é perfeita, mas tem funcionado bem para mim ao longo de vinte anos de carreira e 14 livros escritos.

• Querem escrever porque gostam de escrever, ou porque gostam da ideia de terem escrito? Importante, se realmente tencionam concluir aquilo que começaram.

• Escrever o tipo de histórias que se gostaria de ler. Risco de ser demasiado à volta do nosso umbigo, mas ao menos elimina a questão «como surgem as ideias».

• A vida da maior parte de nós pode não ser muito aventureira, mas a inspiração continua a ser tudo o que nos rodeia. Detalhes do dia-a-dia. Complementa-se com pesquisa.

• A escrita requer disciplina, e cada um tem de encontrar a sua própria «zona».

• Se calhar já a descobriram. Se ainda não sabem qual é, nada como experimentar. Eu achava que tinha uma só, mas um bloqueio criativo levou-me a descobrir outra.

• Inspiração é muito bonito, mas é apenas a faísca. O mais importante para concluir o que se começa com a inspiração é a consistência. X páginas/palavras por dia, mas sempre algo.

• Falando em faíscas, pode ser qualquer coisa. Vamos experimentar algo de específico hoje.

• Embora seja possessivo com o que crio, sempre me senti estimulado em projectos em que era para brincar no «parque infantil» de outros (Leopoldina, Super-Homem).

• Imagino que muitos de vocês terão ideias, mas vamos fazer de conta que não e, com uma experiência, fazer engenharia reversa para chegarmos à parte por que se deve começar: o gérmen da história. O conceito básico.

    ◦ A cena começa de…
    ◦ O local é...
    ◦ Sente-se uma atmosfera…
    ◦ A primeira coisa que o leitor vê é…
    ◦ O protagonista está…
    ◦ O protagonista quer…
    ◦ O protagonista não tem o que quer porque…
    ◦ Para o conseguir, está disposto a…
    ◦ De repente, aparece...

• A mim, ajuda-me pensar que isto é um puzzle. Algo que consigo mapear. Um conjunto de peças que compõem algo e a cujo todo tenho de dar sentido. Vamos fazer isso com base neste resultado.

• Um livro com um mundo fascinante e personagens banais dificilmente cativa; mas o oposto nunca falha. Invistam nas personagens e não façam delas meros porta-vozes do enredo. Mas…

• A essência de qualquer história é o conflito. E é precisamente o conflito das personagens com o mundo o que faz a história. Lembrem-se dessa oposição quando escrevem aventuras.

• Dica para vos ajudar a construir o mundo à volta do gérmen da vossa ideia: porquê e como é que isso afecta o mundo. Senhor é dos Anéis. Porquê um anel? Para que possa trocar facilmente de mãos e para o momento climático no final. E cria os Espectros do Anel, os adversários mais memoráveis da trilogia.

Sessão II

• Na sessão anterior, pus-vos um par de bóias e atirei-vos para a água. Agora, entremos nos detalhes.

• Descrições. Questão de preferência. Sou muito detalhado, porque sou cioso da minha criação e quero que os leitores vejam o que vejo. Mas nem toda a gente gosta disso.

• Ler faz o cérebro trabalhar, e os leitores preenchem facilmente as lacunas da vossa descrição, por isso só precisam de dar algo a que se possa agarrar, que o leitor trata do resto.

• Idealmente, devem «tocar» cada um dos cinco sentidos. Não têm de o fazer, mas não há sentidos irrelevantes. Qualquer um deles pode revelar algo mais acerca da pessoa ou objecto que se descreve, e torna mais rico.
         
• Não negligenciem os nomes, que eles podem descaracterizar o mundo que criarem. Exercício de adjectivo, anagrama, etc. Drahregs.
        ◦ Mudem o vosso nome. Usem-no como base, façam um anagrama com ele, pensem em adjectivos que vos caracterizem em português ou outro idioma, misturem-nos, usem-nos como prefixo ou sufixo, combinem-no com outro nome de que gostem.
      
• Personagens devem falar umas com as outras, não para o leitor. Nunca se esqueçam.
      
• Diferenciem. Não ponham toda a gente a falar com a mesma «voz». E, a menos que a história o exija, não ponham um fazendeiro a falar como o Eça de Queiroz.
      
• A forma como escrevem o diálogo serve por si só para dar «cor» às personagens. Não têm de o fazer com todas, mas a maior parte de nós tem tiques, cadências e modos de fala, e isso assinala quem está a falar.
      
• O conceito da unidade de efeito — o de que cada elemento deve ajudar a criar um determinado impacto emocional — é giro e funciona. Ajuda-vos a ter um conceito em torno do qual caracterizar. Mas não exagerem.
        ◦ Lá porque um feiticeiro se especializa em fogo, não quer dizer que tenha de ser ruivo, ter um temperamento fogoso e chamar-se Ignácio. Pessoas tendem a ser mais complexas do que isso.
      
• Religião. Independentemente das vossas crenças (ou falta delas), não a negligenciem. É um componente importante da condição humana e influencia profundamente o mundo que criarem e como as personagens interagem com ele.
      
• Uma aventura não precisa de ter acção. Mas, se não gostam de escrever cenas de acção, pelo amor de Deus, não montem uma narrativa que leva a uma resolução de combate. Vai ser só anticlimático.
      
• Se não gostam de combates, fiquem-se por personagens que resolvem problemas através da astúcia, por exemplo.
      
• Repetindo: uma aventura pode ser uma rapariga a declarar-se à sua paixão de liceu, um obstáculo a ultrapassar, uma idosa a atravessar a estrada.
      
• Quando estão a estruturar o tal mapa ou «esqueleto» da história, façam de conta que são um DJ numa festa. Têm de equilibrar o ritmo e a intensidade. Não escrevam um combate de 16 páginas (como eu fiz) e apimentem a coisa.
      
• Os quatro «ãos»: interacção (personagens), introspecção (protagonista), exploração (mundo), confusão (conflito do protagonista com as personagens, o mundo e consigo mesmo).
      
• Consoante o género literário que escreverem, vão ter mais ou menos de cada um destes elementos. Mas, a menos que seja uma obra muito específica, não convém que nenhum deles falte.